terça-feira, 15 de maio de 2018

"O Autista não percebe o outro"

Há algum tempo a correria do dia a dia: trabalho, estudo, casa, filhos, a rotina de terapia e atividades das crianças acabou por me afastar da escrita do Blog. Hoje, porém, uma frase me reconduziu à escrita: "O Autista, por exemplo, não percebe o outro". Estas palavras ficaram ecoando em minha mente. Era preciso externar o que estava pensando e sentindo, falar com as pessoas. Eu precisava escrever. Me lembrei que uma amiga, Laura, há alguns meses, havia me perguntado sobre o blog e disse estar na torcida para que eu voltasse a publicar meus depoimentos. Eu a prometi que, caso conseguisse afastamento para o doutorado, retomaria a escrita e, um pouco atrasada, aqui estou!

Bem, mas em que contexto a frase foi proferida? Estava em um seminário onde o palestrante versava sobre percepção e querendo chamar atenção ao fato de que esta é subjetiva disse: "Imagine um clips sobre a mesa, uma pessoa pode percebê-lo, outras... Por exemplo, um autista. Pode ter um autista sentado, passar uma pessoa e ele nem notar. O autista não percebe o outro". Após este exemplo, continuou sua palestra apresentando outros, sem retomar o autista.  Essa fala me desestabilizou. Não era o tema da palestra, não estava preparada para ouvir tal "analogia". O palestrante nem percebeu o que acabara de fazer, afinal de contas, este não é um sinônimo de autismo? A não percepção do outro, a insensibilidade? Comecei a perceber que ele havia apenas lançado mão de um "conhecimento" que havia adquirido, algo que está presente nos discursos do senso comum, incorporado e externado, sem segundas intenções, naquele momento. Porém, para mim, que possuo envolvimento pessoal com o autismo, percebi que aquela frase deixaria sequelas, não só em mim por ter sido "ferida" por aquelas palavras, mas em todos que ali estavam: não iriam estes repetir tal constatação no futuro?

Num primeiro momento pensei: deixa pra lá, ele não fez por mal. Comecei, porém, a lembrar das pessoas que, assim como eu, lutam pelo respeito ao indivíduo autista. Lembrei do Pedro, de como é sensível e capaz de perceber o outro e compreendi todo o preconceito agregado àquela frase. Ao final da palestra fui a primeira a me inscrever para fazer questões. Me apresentei ao palestrante e disse que uma frase dita por ele estava me incomodando desde o início da palestra: "O autista não percebe o outro". Falei que um forte movimento das pessoas ligadas ao autismo é pelo fim do uso pejorativo da palavra. Uso este que apenas contribui para o preconceito. Devido a este uso consensual, a este discurso apropriado pelo senso comum, pais não querem que seus filhos estudem na sala de uma criança autista porque ouviram que eles são violentos, ou professores justificam que é normal deixar o autista sozinho no canto da sala porque ouviram que eles gostam de ficar isolados no seu mundo. No início da palestra ele havia dito que algumas pessoas conseguiam enxergar um determinado desenho em 3D, outras não. Bastava que ele dissesse: algumas pessoas verão o clips sobre a mesa, outras não; algumas pessoas percebem o outro, outras não. Eu teria vários exemplos que mostram como o autista percebe o outro, mas que me ative a pedir o fim do uso do autista como exemplo e do autismo no sentido pejorativo. Ele reconheceu que não foi um exemplo feliz e se desculpou. Espero que, pelo menos os presentes naquele auditório não utilizem mais autismo como sinônimo de falta de ação, de interação, de percepção... em seus discursos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário